25 janeiro, 2014

Militantes do Grito

No salão vagueiam ainda os restos electrónicos da música que soou há instantes.
Um estranho silêncio invadiu o espaço, misturado com o usual caminhar dos arrumos, dos retornos, da pós-alegria dos reencontros. As cortinas destabilizam o ambiente solene, empurradas num balanço pelo vento nocturno que entra pelas varandas que as suportam.
Um grito grave, quase bárbaro, ruge numa das extremidades da sala.
Os habitantes que ocupam o salão tornam-se para ele, num movimento automático, como sementes que desabrocham da terra e num ritmo acelerado se enraízam ao chão como troncos de árvore que hão-de viver muito depois de tudo o resto ter morrido.
O grito bárbaro repete-se, e com ele repetem-se as repostas em uníssono dos outros - sincronizadas, em tempos certos, como se fosse um manifesto já inerente à sua própria existência. O grito cresce, fragmenta-se, arranha as cordas vocais de quem o profere. E os outros, sempre os outros, elevam a voz ao expoente máximo da insânia.
As janelas batem na parede com a força da brisa que as pontapeia, dando o compasso à sinfonia bucólica que destrói o espaço e o volta a construir.

Num golpe de segundos, o grito cessa, vazando o lugar para o silêncio o ocupar de novo.
Os troncos plantados no soalho metamorfoseiam-se em andorinhas que migram para outro lugar, como se aquela voz que encheu o universo, o seu universo, tivesse sido uma Primavera momentânea, que os trouxe de volta ao sítio onde sempre irão voltar.
Mas o grito ecoa, em silêncio. Todos o ouvem. Mas eles sentem-no.
É um grito que é mais que a sua voz, é mais que a sua alma.
É um grito que é como uma bala enterrada na carne - podem tirá-la do corpo, mas a sua marca dura enquanto eles durarem, e só desaparece quando a terra os levar.

Sem comentários:

Enviar um comentário