25 outubro, 2015

Na morte de um livro

Como é que se pode matar um livro
Se o livro é a vida eternizada,
A história congelada,
O suporte físico de uma galáxia mental?
Para onde vão as palavras quando se mata um livro?
Para onde saltam as letras quando se queimam as folhas?
Na biblioteca lê-se «proposto para abate» - e assalta-nos a terrível sensação de que um pai mata um filho.
Não se podem matar os livros
Mas alguém, por certo, disse: hoje matei um livro.
E das suas mãos escorre a tinta do acto bárbaro.

Hoje mataram um livro, três livros, dez livros,
E com eles levaram uma parte, três partes, dez partes,
Das almas que encontram a vida no folhear.

04 novembro, 2014

Sala de Espera

Sala de espera de um centro de saúde em Lisboa. Piso 5.

É inerente ao espaço o cheiro a álcoois e soros imaginários. Os janelões que se rasgam na parede deixam entrar uns escassos raios de sol que passam por entre as nuvens densas, numa tarde chuvosa de Fevereiro.

Sentada num banco junto a um desses janelões está uma mulher, entre os 70 e os 80 anos. Segura uma mala de ombro e as habituais pastas de exames médicos. À sua frente, em pé, cirandando em pequenos círculos para a frente e para trás está um homem, dentro da mesma idade, suportando o peso dos anos nos ombros, que eram aligeirados por um peculiar gorro verde que lhe cobria a testa e as orelhas.

Qualquer observador, perspicaz ou não, imediatamente os ligava. Eram portadores daquela característica metafísica da semelhança que dois seres ganham após longos anos de coexistência.

Nunca se olhavam e mantinham uma distância entre eles. Nunca estavam os dois sentados nem os dois de pé. O único olhar partilhado foi quando ela, ao vê-lo tirar o gorro da cabeça, lhe fez uma cara de desagrado, indicando-lhe, em gesto de aviso ou de ordem, para ajeitar o cabelo despenteado.

Passado pouco tempo aproximou-se dela, encostando-se à janela, nunca a encarando. Olhou para a rua, iluminando-se os seus olhos com o reflexo daquela luz cinzenta de chuva.

- Realmente a gente não devia ter vindo tão cedo – disse ele. – Olha, há ali em baixo uma loja de flores, já viste?!

- Já! – Um daqueles “já” em que o “á” se prolonga no tempo e no espaço; um “já” de impaciência; um “já” de duas letras que queria dizer “não sei se vi mas não me incomodes com essas coisas.”

Calaram-se ambos. Pouco tempo depois uma das médicas de uma das portas chamou o seu nome, prefixado por um “senhor” que mostrava já a familiaridade daquela presença. Entraram os dois para o gabinete, ela seguindo-o, segurando aquilo que lhe pertencia a ele – quer fossem os exames, as obrigações que o anel dourado lhe atribuiu ou as réstias do amor que se evaporou enquanto as décadas passaram.

Por mero acaso, partilhámos os três o elevador à saída.

- Tive que cá vir hoje, o meu lado esquerdo quase não mexe, fiz um cateterismo, está a ver? – disse-me ele, mostrando a mão – Tenho a barriga toda negra.

Respondi-lhe em simples onomatopeias combalidas, de quem não sabia, pela força do momento, o que lhe responder.

Chegámos ao piso 0. Saí à frente, segurando a porta para lhes dar passagem. Agradeceram os dois, desejando uma boa tarde a seguir. Ele, repetidamente. Retribui as mesmas palavras.

Recordo inevitavelmente as suas figuras, o seu físico. O cabelo branco dela com o risco-ao-lado milimetricamente desenhado e o nariz redondo que deu a mesma forma aos óculos. A pequena altura dele, o cabelo à Cesariny e os olhos calmos, doces, de alma antiga. Mas o que permanece não é isso; é a imagem que criei deles, de quando a sua pele era lisa, de quando as suas costas eram direitas, de quando os seus cabelos eram cobertos de outra cor que não a branca; de quando o afastamento era provocado não pela saturação mas pela timidez; de quando os olhares não se cruzavam por originarem o inevitável ruborizar da face; de quando não existia margem de olhar pela janela porque nada do que acontecesse lá fora era relevante.

Permanece em mim essa ideia. A ideia do amor caduco, do amor não perene. Assusta-me a ideia, essa ideia, de que um dia nos deslumbraremos com lojas que vendem flores, por estarmos já demasiado cansados plantar os nossos próprios jardins.

08 julho, 2014

Escrevo-te hoje

Escrevo-te hoje, sem nenhuma razão especial.
É precisamente 1:30h da manhã. A noite está nublada e as estrelas brilham tenuemente, apagadas pelo vento frio que corre nesta madrugada de Julho.
Escolhi cuidadosamente o bloco e a caneta para te escrever. São habituais estes pequenos ritos, mas sei que não sabes. Acho que nem sequer sabes que escrevo. Mas não importa, porque escrevo-te hoje, como te podia ter escrito ontem ou daqui a cinco anos. Ainda assim não irias saber.
Escrevo-te hoje, e hoje é a última vez que te escrevo. Quanto mudámos com as marés que nasceram e morreram ao longo destes anos… Até já me surgiram pontuais cabelos brancos. E a ti? Sei que já tens mais barba. Pareces mais sábio. Acho que estás mais sábio.
Escrevo-te hoje com olhos que te vêem de forma diferente; olhos que provavelmente não escreveriam assim se não tivessem mudado. Ainda bem que mudaram.
Escrevo-te hoje, e o Chiado continua igual. Os candeeiros enferrujados desta cidade de onde foges também. Mas eu não.
Escrevo-te hoje a milhas de distância, do corpo e da alma, que sei que está entregue a outrem. Se calhar escrevo-te hoje por isso. Mas sem mágoas! Fico contente, e só fico contente porque hoje, enquanto te escrevo – e esta é a última vez que te escrevo – agradeço-te.
Por tua causa, hoje existo sem cânones definidos. Foste o mais idílico de todos eles, e na tua natureza mais simples, falhaste. Falhaste-me. Mas não te lamentes! Agradeço-te por isso.
Foste o teu próprio antídoto; a tua pele foi-se despindo com o passar dos dias e descobri que a tua nudez não me cabia. É quando nos despimos dos adereços do espectáculo mundano que percebemos se somos certos para amar. E tu não eras. E é por isto que te escrevo.

Escrevo-te hoje. Agradeço-te hoje. Por nunca me teres amado.

08 junho, 2014

O Tell Me The Truth About Love

(...) When it comes, will it come without warning
Just as I'm picking my nose?
Will it knock on my door in the morning,
Or tread in the bus on my toes?
Will it come like a change in the wheather?
Will its greetting be corteous or rough?
Will it alter my life altogether?
O tell me the truth about love.

- W. H. Auden

14 abril, 2014

Sei que te amo quando troco os nomes das ruas pelo teu nome.