09 dezembro, 2012

Diário de uma Paixão


"Procuro o teu perfume, teu ombro, tua mão no respirar morno das casas. Revolvo-me no branco dos lençóis, como o mar se revolve contra as paredes, em maré viva. O sopro de teu sono humedece-me o peito. Manhã confusa, nevoenta luz onde se quebra o pesadelo. Procuro-te, peixe alucinante, no fundo lodoso de mim. O dia nasce com um travo de sol frio, e dum lado para o outro, dentro do exíguo quarto. O ténue tecido das cortinas separa o sonho vivido em ti da cidade há muito acordada. Prolongo esse instante de ilusão, espio teu corpo desesperadamente nu. No espelho já não sei quem sou. Adivinho-te, paro o olhar naqueles olhos-reflexo para me lembrar dos teus. Dentro do espelho apareceu então a lívida pele do tempo que nos separou. Uma flor áspera cresce nos lábios, exterminadora. E na manhã mole das flores minerais, sem forças nem esperma, meu corpo aproxima-se do mortal eclipse. Mil partículas fosforescentes explodem convulsivas. Convulsiva borboleta do cio. De novo teu perfume de essência rara, álcoois nocturnos, mão, minha mão sozinha e nua prolongando-se em forma de caroço. Palpável zinabre absorvido em espasmo lúcido, furioso. Latejando no estilhaço cristalino da paixão, segregado no silêncio iminente da morte. Desço as escadas, abro a porta com a solidão terrível de sonâmbulo na boca. Compro o jornal, cigarros, o céu abre-se gelado por cima da sórdida teia dos arranha-céus. O café, estremeço num amargor que evoca novamente a tua ausência."




Al Berto, in 6. / O Pranto das Mulheres Sábias, O Medo

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