21 janeiro, 2012

A porta bateu


A porta bateu.

Nos lençóis rasgados assentava um corpo branco e feminino. Ela, imóvel, olhava o vidro pintado pelas gotas da violenta chuva de Abril que feria as fendas da janela.

Do outro lado da maçaneta, e da fechadura talvez, uma mão forte, gasta de tempo, masculina. Ele, curvado, descia os degraus da escadaria em caracol daquele prédio pombalino, onde tantas vezes tomava o sentido inverso dos passos.

Despertou. Levantou-se dos lençóis rasgados, cobrindo o corpo com a melancolia daquele espaço. Pôs Billie Holiday a tocar. Vestiu-se, desta vez, com aquela voz. Percorreu a casa ampla, numa tentativa de sentir ainda mais o vazio dentro dela, rompendo-o com o ranger do soalho.

Saiu. Pisou a calçada já marcada pelo seu porte, já marcada pelo movimento automático de virar a esquina, de ajeitar a gabardine e não olhar para a janela onde sabia que ela estava.

Pôs-se à janela. Sabia que ele não iria olhar ao dobrar a esquina. Envolveu o seu corpo branco nos seus braços brancos, enquanto admirava o céu translúcido daquela tarde.

Virou a esquina. Virou a cabeça. Ganhou a coragem de olhar para uma janela onde uma leve sombra de arrependimento surgiu. Para uma janela onde ela não estava.

Continuou em frente à janela. Nua, de trapos e emoções. Centrava o seu olhar vago num horizonte invisível, aquém de onde a visão poderia chegar. Encostou as costas ao vidro frio, ao mesmo tempo que cerrava os olhos, deixando-se invadir por aquela estúpida sensação de enregelamento do coração, vinda do calor de um corpo que ofegava há momentos junto ao seu, e que lhe causava mais frio que um vidro possuído pelas chuvas de Abril.

Percorria as ruas do esquecimento, calcando o que o ligava ao coração. Olhava para as janelas, para as sardinheiras, para as cordas da roupa e para os vidros. E encontrava-se sempre, irracionalmente, a fantasiar como se ela estivesse em cada uma delas. Mas não. E por isso calcava ainda com mais força o coração, deixando o seu peso abater-se sobre a utopia mais próxima de si.

Ela estava nua; ele coberto. A distância física era cada vez maior; a emocional também. Alimentavam-se de silêncios e de desejos, viviam de momentos carnais e de fraquezas humanas. E iludiam-se, mutuamente. Davam um ao outro aquilo que era esperado, mas não o que era sentido. Duas rochas em colisão, dois maciços em contacto. Tão distantes, mas tão próximos. Duas almas tão próximas, que esperavam que algum dia, por alguma coincidência, por obra de um segundo, a dualidade se transformasse em monotonia partilhada, em melancolia bipartida, em soalho a ranger em duplo compasso.

Mas até esse dia, a porta continuaria a bater.

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