04 abril, 2011

Vindo da Aula de Português

"O menino que escrevia versos" - Mia Couto

- Ele escreve versos!
Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.
- Há antecedentes na família?
- Desculpe, doutor?

O médico destrocou-se em tintins.
Dona Serafina respondeu que não
O pai da criança, mecânico de profissão...
fora quem descobrira a proeza num domingo à tarde. A notícia já correra pela aldeia de nenhures, e toda a gente já sabia que a criança do Tó Mecânico poesiava.
- Filho meu não escreve versos! - dizia ele de boca cheia.
As velhas benziam-se com o seu passar, os homens olhavam de lado, as mães tapavam os olhos dos filhos. Cena tirada de filme de terror, caso a criança estivesse possuída pelo demónio e não pelo génio da Arte. Pobre criança cercada de hienas dos montes do nada.
O tempo passava e a exclusão aumentava. O poeta tornou-se numa cobaia de oficina e o espírito montanheiro começou a consumi-lo. As canetas foram substituídas por chaves de fendas, os blocos por roscas e a tinta por óleo. Não se via tal criatura sem o fato-macaco vestido. Tornou-se numa hiena dos montes do nada, e chegou a sua vez de dar origem a novas criaturas.
- Ele escreve versos! - apontou a mulher do outrora poeta para a nova criança.
- Há antecedentes na família?
- Não. - respondeu o neo-mecânico. - Não há, nem haverá descendentes. Filho meu não escreve versos! - dizia ele de boca cheia.

Sala 402, 04.04.2011 (Graças ao grande D.)

Sem comentários:

Enviar um comentário