26 novembro, 2010

A Um Passo do Fim



Ano:
1985
Local: Lisboa

A década de 80 estava nos seus tempos áureos.
Estava em voga o boom das drogas, do sexo, do alcoól e do rock & roll. Porém, esse boom já tinha tirado muito.
Tinha tirado a coerência a muitas famílias, a sanidade a muitos grupos, o amor a muitos amantes e a vida a muitas pessoas.
Lisa sempre fora uma rapariga muito calma e pacata, era do género de pessoa que não sobressaía no meio de um grupo pela sua personalidade fulgente, pelo contrário, todo o mistério que a circundava e o silêncio que a emanava despertavam a todos os rapazes uma curiosidade automática por aquela bela rapariga de olhos cor de mel.
Mas como tudo, a sua atitude pacífica e silenciosa não podia ser tomada como um dado adquirido, e embora desconhecido, Lisa tinha um ponto fraco que quando tocado soltava toda a sua ira.

- Hoje vamos falar do fim - exclamou de modo autoritário o professor de Filosofia.
- Fim da vida?
- Fim de uma amizade?
- Fim da nossa confiança?
As perguntas vinham de todos os lados da pequena sala de aula daquele liceu antigo. Um liceu cheio de sabedoria, de paixão, de idade. Um liceu cheio de escola.
- Vamos falar de todos esses fins. O Fim engloba uma série de fins. Mas não vou falar do fim que é mais usual: o fim da vida. Não... Vou falar do fim que nos mata. O fim do amor.
O silêncio cortante passou nos corpos de todos os alunos daquela sala.
Nos dias de hoje, é algo que é naturalmente falado por qualquer um, mas naqueles tempos, naquela década não... Não num seio familiar, não a todos os amigos e muito menos por um professor de Filosofia.
- Assustei-vos?! Não devia, pois o amor não deve ser tabu, não deve ser algo curriqueiramente falado ou omitido, temos que explorá-lo, abri-lo, demonstrá-lo e até revelar aquilo que mais nos atormenta no amor: a dor de quando acaba. Por isso, para vocês, qual a pior forma que figura o fim do amor?
O silêncio continuava. Até os rapazes, os durões que falavam das raparigas como aquisições, não se atreveram a abrir a boca naquele momento, era assunto ignorado por eles.
- Para mim, a pior figuração de fim do amor é a traição.
A voz vinha do fundo da sala, de um grupo standard intemporal: as raparigas perfeitas para a época, com uma embalagem atractiva mas conteúdo indisponível.
- Podes repetir por favor, Isabel?
- Eu disse que a pior figuração do fim do amor é a traição, sem dúvida.
- E porque dizes isso? Porque achas que a traição é a pior forma do fim do amor?
- Porque, como é óbvio, eu não fui feita para ser "a outra" nem para ser posta em segundo plano.
- E é apenas isso? Lugares? Estados? Estatuto? E então a confiança que te abdicaram, o facto das promessas serem quebradas? Isso não conta?
- Isso ninguém vê nem sabe, só eu e ele.
- E é isso que importa para ti, certo? E então uma morte, não seria pior?
- Professor, por favor... Não sei, isso é difícil de responder!
- A ignorância sempre foi algo que me fascinou.
A voz vinha do fundo da sala. Não do grupo standard, mas de uma mesa sozinha, encostada à parede, com a aluna sozinha também.
- Podes fundamentar a tua afirmação um pouco, Lisa? - interrogou o professor.
O corpo de Lisa tremeu. Aquela frase tinha sido involuntária, impossível de impedir a sua declamação. Repentina, repleta de indignação, precipitação talvez, mas sobretudo pena. Porém, o vulcão que despertou no interior de Lisa já ia demasiado avançado para ser detido. Não havia maneira de calar as palavras proferidas ou os sentimentos explícitos na sua afirmação. O ponto fraco tinha sido atingido, e Lisa por momentos silenciou a sua voz interior.
- Vá Lisa, tanta iniciativa de me contrariar, agora quero ouvir o que tens para dizer... - provocava Isabel, fazendo furor no seu grupinho púdico e fútil.
Lisa respirou fundo. Sabia que já era altura de revelar a todos o que a atormentava, e aquele era precisamente o momento.
- Sabes o que mais me incomoda na vida que tomamos e nas pessoas que temos na nossa sociedade? É o facto de falarem do que não sabem. Algo tão sério como uma morte é falada como algo tão banal, algo que tem como resposta um não sei quando comparado com uma traição. E agora diz-me, já alguma vez morreu o teu amigo, o teu companheiro, a pessoa que mais amavas num certo momento da tua vida?
Isabel estava perplexa com a atitude de Lisa, mas sem nunca descer do seu brilhante pedestal respondeu à pergunta.
- Não.
- Pois, nunca te aconteceu. Não sabes como te sentes, como o teu corpo reage, como a tua alma mirra e se contorce por dentro para estancar a dor que transborda involuntariamente.
Não sabes o que é sentir que nunca mais vais poder olhá-lo nos olhos e realmente vê-los como são, não sabes o que é nunca mais poder sentir o seu toque, os teus lábios nos dele e a mão dele na tua, não sabes o que é tentares compulsivamente continuar a sentir o seu cheiro, mas que o tempo já apagou, tentares no silêncio da noite ouvires a voz dele, mas não conseguires ouvir mais que o som das tuas lágrimas, e já estares farta... Farta de olhar pela janela e saber que nunca mais vais vê-lo a sorrir para ti, farta de veres os teus amigos felizes e apaixonados e tu sozinha, vazia, oca... Farta de esperares que ele comece a surgir no fundo da rua para vir ao teu encontro, mas adivinha... Ele não vem, nunca mais virá, e por isso tu tentas lembrar-te dele, do seu cabelo, das suas feições, das suas marcas, dos seus olhos, do seu sorriso que preenchia o teu dia, mas a dor é tão grande que acciona o esquecimento, e as suas marcas tornam-se a cada dia menos nítidas, e tu tentas a todo o custo relembrar à memória que ele ainda vive no teu coração, mas ela não quer saber do coração, só quer saber dela, e então continua, os dias passam e as visões cada vez mais turvas, até que te apercebes que as memórias tornaram-se miragens: inacessíveis, intocáveis, questionando por vezes a sua realidade e a sua existência. E é aí que te revoltas. Revoltas-te porque te culpas de não o conseguires ver como ele era, por não preencheres o vazio que se abriu como uma cova, em que no lugar do caixão, no teu vazio colocaram um grito mudo, sufocante... Revoltas-te por sofreres por algo que ele teve a culpa, revoltas-te por não conseguires voltar atrás no tempo e com todas as tuas forças tirá-lo das opções que escolheu, dos maus caminhos que decidiu seguir por más influências nas quais ele se deixou ir como uma folha insignificante num rio ardente, que levam a uma falésia... A falésia da necessidade, do mais a cada dia, da dependência que o consumiu e tu, a vê-lo morrer a cada dia e sem nada poder fazer, até que o seu corpo se torna isso, apenas um corpo, seco sem alma, sem coração, porque mais nunca é suficiente para quem está à beira da queda. Revoltas-te porque ele já não está a teu lado e tu sofres o dobro por isso. Porque chegas a uma encruzilhada e a única coisa que tens é uma mão cheia de saudade e outra cheia de dor, e tu não consegues livrar-te delas, porque a força maior que tens, o teu coração, não vai voltar a bater por alguma razão, e porque sabes que não vais viver, vais meramente sobreviver e esperar que os dias passem. Por vezes mais depressa, por vezes mais devagar, como quando ouves comentários sem fundamento qualquer que comparam uma infantilidade de uma traição com uma morte e todos os seus acréscimos, como o estado em que te encontras. Porque as pessoas falam daquilo que não sabem e metem dentro de uma caixa minúscula, todos os sentimentos, sensações, emoções, promessas, dias, meses, anos, e vidas que se foram dentro de um caixão.

A pequena sala do liceu antigo estava gélida.
As respirações estavam ofegantes e os olhares lacrimejantes perante tal discurso.
A campainha tocou e os alunos saíram. O primeiro passo que deram para fora daquela sala foi o passo decisivo para a continuação das suas vidas: ou continuavam com a sua atitude ou mudavam e tinham como lição o tocante testemunho de Lisa. Foi um grande passo para o resto de tudo.
Para Lisa foi apenas mais um passo.

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