06 março, 2010

Arte de Amar


Segundo Chaplin, a beleza existe em tudo, tanto no bem como no mal, mas só os artistas e os poetas sabem encontrá-la.
E eu acredito. Cada vez mais. Mas especialmente naquela altura, este era o meu lema de vida. Vamos fazer uma pequena analepse.
Decorria o ano de 1969, quando eu tinha uns simples 17 anos e sonhava ser uma grande artista. Desde que me lembrava de existir, lembrava-me de me fazer acompanhar por um pincel e umas quantas aguarelas. O meu gosto pela pintura desenvolvia-se cada vez mais, era algo que não conseguia evitar ou parar. Porém, uma das minhas maiores mágoas era quando alguém não compreendia as minhas obras ou destruía os meus sonhos. Mas porque é que ninguém me percebe? Como é que alguém pode achar a Arte uma segunda opção ou algo com menos importância? Porque é que não posso ser levada a sério? Terei o Mundo todo contra mim? Estas eram algumas das perguntas que todos os dias passavam pela minha cabeça. Pela cabeça da pobre Maria Antónia Pereira.
Esta era outra questão. Que artista algum dia se chamaria Maria Antónia? De certeza que o Picasso não se chamava Pablo António! Mas esta questão já estava resolvida! O meu nome artístico seria Mia Pery. E ai de quem me contrariasse!
Mas foi num desses dias que se deu um dos factos mais importantes e marcantes de toda a minha vida.
Eu e a minha família vivíamos numa pequena vila junto ao mar, não muito longe de Lisboa, e cada vez que algo não me corria bem, podia sempre refugiar-me naquela praia junto a minha casa. Nesse dia o céu estava nublado, e sobre o mar, um pequeno raio de sol rasgava as nuvens e reflectia o seu tom alaranjado sobre as águas azuis, e eu decidi pintar aquela paisagem magnífica.
Foi então, que a minha irmã Lígia se aproximou do meu cavalete e sem me encarar perguntou: - Achas que algum dia vais conseguir?
Nem lhe respondi. Eu sabia que ela não me estava a rebaixar ou humilhar, nem me disse aquilo com más intenções, pois ela era das pessoas que mais acreditava no meu sonho, mas custou-me tanto ouvi-lo. Foi como se uma rocha de uma tonelada se abatesse sobre mim. Foi para lá que corri nesse dia. Para a praia.
Quando lá cheguei, chorei como já há muito não fazia. Sentei-me na areia e fiquei durante duas horas a observar o mar, até que ao revistar um dos bolsos do meu casaco amarelo-torrado, encontrei um pequeno pau de giz azul.
Levantei-me, e num repente desenhei numa rocha longe do mar, um coração perfurado por uma seta e com a legenda:
- “ Serão algum dia, os teus sonhos destruídos como os meus? De: M., Para: o Mundo.”
Voltei para casa, sem esperar que alguém desse importância ou reparasse em mais uma das minhas obras.
No dia seguinte, voltei à praia para uma caminhada, que já era habitual e que me sabia muito bem.
Foi naquele instante que algo mudou, algo que iria afectar o resto da minha vida. Na rocha onde estava o meu desenho, estava agora outro, feito em giz vermelho. Dois corações, perfurados por duas setas, com uma legenda.
- “ Os meus sonhos são destruídos ao mesmo tempo que os teus. De: X., Para: o Mundo e para M.”
Afinal existia alguém. Alguém que apreciava a minha obra, alguém a quem o meu desenho mostrava algum significado. Não sabia quem era ou como era, mas existia alguém.
Durante duas semanas, trocámos desenhos e legendas por aquela rocha, até que X. tomou a decisão de me conhecer. No derradeiro desenho, figurava um relógio sem ponteiros, com a legenda:
- “ Vamos comandar o tempo. Amanhã, na praia, às 15.30h. Eu sei que te vou conhecer. De: X. vermelho, Para: M. azul.”
E fiz o que disseste. No dia seguinte, às 15.30h, lá estava eu, o meu casaco amarelo-torrado e o giz azul, quando vi alguém aproximar-se. Era um rapaz com cabelo castanho claro e óculos redondos, com um casaco preto e por baixo uma t-shirt do festival de Woodstock, com uma máquina de polaróides na mão. Aproximou-se e com um sorriso tímido perguntou-me:
- És a M., não és?
Toda eu tremi, não faço ideia de como foi a minha reacção, mas limitei-me a responder:
- Sim, sou a M. Mia, sou a Mia.
- Eu sabia que te ia conhecer. Eu sou o X. Xavier.
E foi assim que começou a nossa história. O Xavier era um rapaz de 18 anos que sonhava ser fotógrafo e ir estudar para Londres, tal como eu. Tinha estado no festival de Woodstock e tinha tido o prazer de ter fotografado a Janis Joplin a estrear o seu “Piece of My Heart”.
Durante um ano, fizemos promessas, loucuras e acima de tudo, arte. Finalmente tinha alguém com quem partilhar os meus gostos. Alguém que me compreendia, como ninguém antes tinha compreendido. Ele era esse alguém. O alguém que preenchia tudo.
Porém, tinha chegado o momento decisivo. O Xavier iria partir para Londres para estudar fotografia, e eu queria ir com ele para estudar Belas Artes. Esforcei-me ao máximo para o conseguir, mas toda a minha família me proibiu de ir. Arranjavam todos os argumentos possíveis, desde o facto de ser muito nova, até ao facto de ser uma loucura o que iria fazer.
A verdade é que não fui, e o Xavier partiu sem mim.
Despediu-se de mim, com um desenho na rocha da praia.
Ele desenhou um coração, como era habitual entre nós, com uma seta a desviar-se dele, como se tivesse medo ou pena. A frase que ele escreveu, foi a frase que até hoje mais me marcou: - “ Serão algum dia os teus sonhos realmente destruídos? De: Vermelho, Para: Azul.”
Passei 3 anos a martirizar-me e a culpar-me, mas ao mesmo tempo, a ganhar força e coragem. Todos os dias passava pela rocha que marcou o início e o fim de tudo.
No dia em que fiz os meus 21 anos, tomei a decisão de partir para Londres. Já era independente, e não queria saber se era uma loucura. A minha família já sabia que este dia iria chegar e que não poderiam fazer nada para me prender, e assim foi.
Quando cheguei a Londres, comecei a procurar pelo Xavier. Como é óbvio, Londres é muito grande e não o encontrei, até que um dia no centro de Londres, tomei uma das decisões mais importantes e ao mesmo tempo, mais arriscadas que já alguma vez poderia tomar. Num prédio totalmente branco desenhei com um giz azul dois corações, um com um pincel, outro com uma polaróide, onde estava escrito:
- “ Poderão algum dia, os meus sonhos unirem-se aos teus? De: M. azul, Para: X. vermelho.” Na verdade, eu sempre acreditei que tu me pudesses responder, mas ao mesmo tempo, acreditava ainda mais que nunca visses aquilo.
No dia seguinte, acordei sem querer pensar no que tinha feito.
Assim que saí à rua, tentei não passar pelo centro, e especialmente por aquele prédio, mas foi inevitável.
Quando me aproximei, reparei num aglomerado de pessoas junto àquele prédio. Não sei como, corri por entre a multidão, e lá estavas tu, Xavier. Sem algum desenho, apenas escreveste, com letras enormes:
- “Os meus sonhos sempre estiveram unidos aos teus. O azul e o vermelho não se separam.” Corri para os teus braços, e nem queria acreditar. Lá estávamos nós, em Londres, juntos, tal como sempre sonhámos. Daí em diante, construímos uma vida. Inscrevi-me na faculdade de Belas Artes e comecei a trabalhar, tal como tu já tinhas feito. Tornámo-nos célebres, juntos. Vencemos todos aqueles que não acreditavam em nós.
Não sei o que o futuro nos trará. Nem me preocupo. Tu estás comigo. Acredito solenemente que iremos ficar juntos para sempre.
Porquê?
Porque o azul e o vermelho não se separam.
por: Beatriz Saraiva *

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