Sala
de espera de um centro de saúde em Lisboa. Piso 5.
É
inerente ao espaço o cheiro a álcoois e soros imaginários. Os janelões que se
rasgam na parede deixam entrar uns escassos raios de sol que passam por entre
as nuvens densas, numa tarde chuvosa de Fevereiro.
Sentada
num banco junto a um desses janelões está uma mulher, entre os 70 e os 80 anos.
Segura uma mala de ombro e as habituais pastas de exames médicos. À sua frente, em pé, cirandando em
pequenos círculos para a frente e para trás está um homem, dentro da mesma
idade, suportando o peso dos anos nos ombros, que eram aligeirados por um
peculiar gorro verde que lhe cobria a testa e as orelhas.
Qualquer
observador, perspicaz ou não, imediatamente os ligava. Eram portadores daquela
característica metafísica da semelhança que dois seres ganham após longos anos
de coexistência.
Nunca
se olhavam e mantinham uma distância entre eles. Nunca estavam os dois sentados
nem os dois de pé. O único olhar partilhado foi quando ela, ao vê-lo tirar o
gorro da cabeça, lhe fez uma cara de desagrado, indicando-lhe, em gesto de
aviso ou de ordem, para ajeitar o cabelo despenteado.
Passado
pouco tempo aproximou-se dela, encostando-se à janela, nunca a encarando. Olhou
para a rua, iluminando-se os seus olhos com o reflexo daquela luz cinzenta de
chuva.
-
Realmente a gente não devia ter vindo tão cedo – disse ele. – Olha, há ali em
baixo uma loja de flores, já viste?!
-
Já! – Um daqueles “já” em que o “á” se prolonga no tempo e no espaço; um “já”
de impaciência; um “já” de duas letras que queria dizer “não sei se vi mas não
me incomodes com essas coisas.”
Calaram-se
ambos. Pouco tempo depois uma das médicas de uma das portas chamou o seu nome,
prefixado por um “senhor” que mostrava já a familiaridade daquela presença.
Entraram os dois para o gabinete, ela seguindo-o, segurando aquilo que lhe
pertencia a ele – quer fossem os exames, as obrigações que o anel dourado lhe
atribuiu ou as réstias do amor que se evaporou enquanto as décadas passaram.
Por
mero acaso, partilhámos os três o elevador à saída.
-
Tive que cá vir hoje, o meu lado esquerdo quase não mexe, fiz um cateterismo,
está a ver? – disse-me ele, mostrando a mão – Tenho a barriga toda negra.
Respondi-lhe
em simples onomatopeias combalidas, de quem não sabia, pela força do momento, o
que lhe responder.
Chegámos
ao piso 0. Saí à frente, segurando a porta para lhes dar passagem. Agradeceram
os dois, desejando uma boa tarde a seguir. Ele, repetidamente. Retribui as
mesmas palavras.
Recordo
inevitavelmente as suas figuras, o seu físico. O cabelo branco dela com o
risco-ao-lado milimetricamente desenhado e o nariz redondo que deu a mesma
forma aos óculos. A pequena altura dele, o cabelo à Cesariny e os olhos calmos,
doces, de alma antiga. Mas o que permanece não é isso; é a imagem que criei
deles, de quando a sua pele era lisa, de quando as suas costas eram direitas,
de quando os seus cabelos eram cobertos de outra cor que não a branca; de
quando o afastamento era provocado não pela saturação mas pela timidez; de
quando os olhares não se cruzavam por originarem o inevitável ruborizar da face;
de quando não existia margem de olhar pela janela porque nada do que
acontecesse lá fora era relevante.
Permanece
em mim essa ideia. A ideia do amor caduco, do amor não perene. Assusta-me a
ideia, essa ideia, de que um dia nos deslumbraremos com lojas que vendem flores, por estarmos já demasiado cansados plantar os nossos próprios jardins.